Quando o manicómio é o sítio que habitamos
Hoje, fui ao Hospital de Santa Maria tirar sangue para umas análises. Aconselhada pela médica aguentei em jejum até ao meio dia, altura em que estaria muito pouca gente para fazer análises. Assim foi. Cheguei, dirigi-me ao balcão e tratei do meu assunto. Ainda ao balcão sinto alguém encostar-se a mim. Olho, é uma senhora com um ar terrivelmente frágil, muito magra e muito velha, que a gagejar tentava pedir uma informação, enquanto a filha atrás dela lhe chamava estúpida, incapaz e velha que só a fazia perder tempo. Atónita, quase a explodir de fúria, afastei-me e sentei-me à espera que me chamassem para tirar sangue. Ao meu lado, outra mãe com uma filha que não teria mais do que a minha idade. Com a cabeça encostada ao ombro e a boca junto ao ouvido da mãe, sem parar de falar, o tom de voz saía-lhe alto e grave. Queixava-se de dores de cabeça provocadas pela ressaca da noite anterior (dizia ela) ou insultava a mãe por esta não se separar do pai, "um animal que aturas porquê?, porque és parva. Não gostas de ouvir, mas tens de ouvir as verdades...". Com falta de paciência e incomodada com aquilo, levanto-me e sento-me mais atrás próximo de uma outra mulher que aparentava estar na casa dos 60 anos. Esta, ao sentir a minha presença, roda na cadeira e fica quase de costas para mim, ligeiramente curvada, escondendo uma revista que lia com grande concentração. Eu não resisto, deixo passar uns segundos, levanto-me e passo os olhos pela revista. O título do artigo escrito a cor de rosa era qualquer coisa como isto: "O meu marido zangou-se comigo, porque não gosto de sexo oral". Olho em frente na direcção da porta e vejo uma enfermeira com uns papéis na mão, que chama pelo número A68. Era eu. Era a minha vez. Sorri aliviada e fugi com ela.
4 Comments:
Também lá estive, mas vi tudo isto com outra perspectiva. Ora veja:
Já passa do meio dia, o almoço por fazer ainda, os cachopos quase a sairem da escola e eu aqui especada, à espera da Sotôra. Se a assistente social não me tivesse dito que precisava de vir a estas consultas de planeamento familiar para continuar a receber o subsídio, nunca eles me apanhavam aqui que é só loucas, cada uma melhor que a outra.
Ao balcão, uma pobre desgraçada a quem a filha levou tudo o que poupou na vida para pagar os seus vícios e luxos e agora que nem um chavo lhe resta e toda ela é uma magreza escanzelada a filha continua a consumir-lhe o juizo com insultos.
Mesmo à minha frente é o espelho do drama familiar : a filha alcoólica mas que num momento de sobriedade aconselha a mãe a fugir do pai e de uma vida de terror de que ela própria nunca teve forças para escapar e por isso, contenta-se em tentar esquecer com a ajuda da bebida.
Lá atrás, duas mulheres, uma nova e outra velha disputam uma revista. Uma vira-se, outra levanta-se, disfarçam, fingem desinteresse num artigo sobre sexo que a mais velha lê com a nostalgia do vigor que já não tem e a mais nova cobiça com a prepotência da sua juventude.
A enfermeira chama a próxima, que poderia ser eu, se aquela trinca espinhas de nariz levantado com um ar muito incomodado e sempre a trocar de lugar até parar com os olhos na revista da velha não me tivesse passado à frente.
Ainda por cima fiquei com a senha 69.
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Bartleby, já li a Imortalidade há imenso tempo, anos mesmo. Não me lembro bem, mas deves ter razão. Apetece-me inúmeras vezes fazer como a Agnés sim, ainda que use esse método também para atenuar a minha falta de paciência com determinado tipo de miséria humana, por vezes. Não devia ser assim, devia sentir piedade, solidariedade, misericórdia, eu sei lá o que mais, mas prefiro ignorar imensas vezes, confesso. Acontece-me com frequência isto...
Siddharta, tirando a parte do "trinca espinhas"(ai, ai, ai!!!), está tudo excelente. Pode bem ter acontecido assim. Muito bom! :-))
um dia em cheio!
já não se pode sair de casa...
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