Monday, February 20, 2006

POEMA EM LINHA RECTA


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,


Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenha calado, tenho sido mais ridículo ainda;


Eu que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenha agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe . todos eles príncipes na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que, contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ò príncipes, meus irmãos,
Arre estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos . mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

4 Comments:

Blogger TR said...

Eu própria vou ter de comentar o poema que escolhi e que vem muito na linha do post anterior e da imagem do Bordalo; tanto o post anterior como este são escolhas baseadas numa série de pequenos acontecimentos mais ou menos actuais no país e acima de tudo na postura geral das pessoas desde sempre. É o lamento, a forma de expressão deste lamento, a eterna contemplação, a solidão, o silêncio, o remorso, a inveja, o ridículo, os outros que são sempre melhores que nós, quando nós somos sempre tão bons, tão pacíficos, tão concordantes... Desculpem, mas este poema é um excelente retrato, nosso. Há séculos que somos assim. o Álvaro de Campos não escreveu, afinal, nada de novo...Será que vamos ser sempre assim?

5:32 PM  
Blogger TR said...

Apendi isto com o Funes, a única pessoa que conheci que faz o primeiro comentário a alguns dos seus próprios posts, o que, diga-se de passagem, é bastante original!!! :-)

7:36 PM  
Blogger K. said...

É de facto original! :P

E o poema belíssimo.

8:34 PM  
Blogger Concha Pelayo/ AICA (de la Asociación Internacional de Críticos de Arte) said...

Buenas noches Teresa.
Lo que he leído es lo más sensato que leo en mucho tiempo.

No, no van a cambiar las cosas.

Un abrazo.

12:27 AM  

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