O comboio que não vai para lá.
Quando era pequena, tinha um comboio de brincar que partia de uma pequena estação branca e azul, apitava, passava debaixo de uma ponte, rangia enquanto circulava imparável numa curta linha oval e nunca chegava a um destino, porque o destino era a estação branca e azul de onde partem os comboios que apitam, passam debaixo de pontes, rangem, enquanto circulam imparáveis numa curta linha oval, sem nunca encontrar um destino. Mas eu, acordo por vezes a meio da noite e penso nesse lugar. É sempre um lugar difícil, com um rio de um lado e o mar do outro. Penso que as pessoas que correm para o mar são mais puras, ou pelo menos procuram essa pureza só possível precisamente no mar porque no mar se adquire um talento especial para fantasiar com qualidade, para desejar com qualidade e com uma misteriosa liberdade no espírito à qual vulgarmente se chama de inocência. Por isso, penso que é o mar o destino daqueles que apanham o meu comboio de brincar que parte da estação branca e azul de onde partem os comboios que apitam, passam debaixo de pontes, rangem, enquanto circulam imparáveis numa curta linha oval, sem nunca encontrar um destino. Às vezes penso também que só há um momento para este lugar de destino e penso de novo que se trata de um lugar difícil, provavelmente com um rio de um lado e o mar do outro. E eu, que conheço a estação de onde partiu e sei a hora a que o comboio em que sigo partiu, vou nesta viagem circular, que só pode ser de fé, com a dramática e sufocante sensação que apanhei um comboio que, possivelmente, não vai para o mar.
8 Comments:
Este teu belo e sufocante texto fez-me lembrar uma letra de Jorge Palma que entre outras coisas nos diz que
"enquanto houver estrada p´ra andar
a gente não vai parar,
enquanto houver ventos e mar,
a gente vai continuar".
O importante é gozar a rota. Senão não faz sentido.
Se esta viagem é de fé... então onde está a esperança? Parecem-me inseparáveis uma da outra...
E também me parece que há sempre uma forma de mudar de rota, se essa não nos leva a lugar nenhum (e nós queremos ira algum lado). Posso não ser capaz de conduzir eu o comboio, mas posso sempre apear-me dum e apanhar outro.
eu não sei se é de fé, o "tá difícil" sabe? A esperança está sempre implícita nas dúvidas e nunca nas certezas... Ao que creio, não dá para apear... o brinquedo não pára.
Texto bem pensado e bem escrito! :)
Quanto à (tua) viagem, a forma como a descreves faz-me pensar no conceito de eterno retorno.
... que diria Nietzsche se comentasse nesta caixa? ;-))
Beijinhos,
Sinapse
Eu acredito no poder de saltar do comboio e seguir para o mar, a pé. Porque a pé podemos saltar as barreiras, não temos de seguir caminhos, nem estradas, nem os malvados carris metálicos. Ou mesmo os de plástico... A esperança não desaparece, mesmo que tenhamos a certeza de que não vamos chegar.
O que posso dizer? Isto deixou-me com a quela sensação esquisita, que adoro, que vem quando leio, sinto, ouço, vejo alguma coisa perturbante.
Há ainda outra hipótese: tornar-se maquinista!
fantástico lugar esse entre o rio eo mar.
Sempre preferi mergulhar no mar...
o rio esconde mistérios mais obscuros.
"E eu, que conheço a estação de onde partiu e sei a hora a que o comboio em que sigo partiu, vou nesta viagem circular, que só pode ser de fé,". Partindo do princípio que foi isto que li no seu texto...
Eu não sei o que você sente, comento a partir do que escreve.
Quanto à esperança... parece-me mais que estanto implícita, na maioria das vezes, nas dúvidas ela não vive sem uma certeza, pois por definição(entre outras): "é a tendência do espírito para considerar como provável a realização do que se deseja".
Quando não se pode saltar do comboio nem mudar-lhe a rota, então há que dar um sentido ao destino ou à viagem para que não seja um simples vazio.
Obrigado pela resposta :)
Amiga TR...
Estou tentado a dizer que este é o teu melhior post de sempre.
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