Eternos excertos (2)
Como resposta a alguns pedidos, aqui fica mais um texto do autor que prometi revelar no anterior post "Eternos Excertos"
Na verdade já o JC tinha descoberto e revelado o nome do autor do excerto que escolhi num comentário. Trata-se de Herberto Helder em "Passos em Volta".
Este pequeno texto de hoje não é a continuação do anterior, mas sim outro, integral. Espero que não se importem.
Na verdade já o JC tinha descoberto e revelado o nome do autor do excerto que escolhi num comentário. Trata-se de Herberto Helder em "Passos em Volta".
Este pequeno texto de hoje não é a continuação do anterior, mas sim outro, integral. Espero que não se importem.
Teoria das cores
Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora de aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.
O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe, vermelho, pintor - sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.
Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.
FIM
Herberto Helder, em "Passos em Volta"
10 Comments:
"Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo."
Fez mal. Eu ter-me-ia antes suicidado. Quer dizer, eu, narrador, colocado na posição do autor herberto Helder, teria antes posto o artista pintor de peixes a suicidar-se.
Então, Funes, não compreendeu aquela espécie de fidelidade; compreendeu outra ou outra coisa.
Claro, TR.
É que a metamorfose é sempre traição. Na metamorfose não há (não pode haver) fidelidade. E ao artista traído não resta senão o suicídio, isto é a entrega a uma nova fidelidade.
Nota complementar:
Quem escreveu o primeiro comentário foi um tipo que se intitulou "eu, narrador". A TR e eu próprio confundimo-lo com Funes. Não sei se é legítima esta confusão.
Tal como não sei quem é o "eu próprio" que se diz autor deste comentário.
Não interessa quem é o narrador. Vejo que se quer distanciar dele. Tudo bem. O que interessa é o assunto discutido.
Depreendo do penúltimo comentário do narrador que o Funes representa, que para "ele" a fidelidade não contempla a imprevisibilidade, a surpresa, a prória criatividade. A fidelidade será então um compromisso estanque, limitado, organizado. Isto nada tem a ver com a lei da metamorfose aprendida pelo pintor, nem com a fidelidade de que fala o texto. Repito: o narrador aqui representado pelo Funes não compreendeu esta "espécie de fidelidade". (espécie de fidelidade, note-se!)
Se a solução que aponta fosse a correcta não haveria lugar para a arte no mundo, talvez nem para o próprio mundo.
Claro que "a fidelidade não contempla a imprevisibilidade, a surpresa, a prória criatividade." Claro que a "fidelidade [é] um compromisso estanque, limitado, organizado."
Mas isso não significa a impossibilidade da arte no mundo. Significa, sim, que a arte é filha da traição, não da fidelidade.
Não nasce essa nova fidelidade do artista e da qual fala (-mos) da imprevisibilidade, surpresa e criatividade???
O caro "eu" parece alimentar a ideia fácil e algo romântica de que a arte é apenas transgressão e que essa transgressão é uma coisa impossível para um discurso de fidelidade na arte. Pensemos num artista qualquer, Duchamp, por exemplo, ou qualquer outro pop. É inegável que qualquer um deles rompe brutalmente com as formas tradicionais de arte e consequantemente com o próprio conceito de arte. Onde reside aqui a traição? Há surpresa, imprevisibilidade, espanto, descoberta, etc. Há metamorfose, há rotura. Mas qual é a rotura nisto, se toda a arte é fiel à rotura? Mudou o conceito de arte? Alguma vez mudou o conceito de arte? Há maior prova de fidelidade onde domine a imprevisibilidade, a surpresa, a criatividade...? Há arte no mundo sem isto?
Antes que me esmague definitivamente, proponho um acordo:
O pai da arte é a transgressão; a mãe, a fidelidade.
Em complemento deste acordo, a TR obriga-se ainda a reconhecer que um suicídio, às três da manhã, num farol, a ouvir Lizst, é mais belo do que a mera pintura de um peixe amarelo.
... quase mais belo que o texto é o diálogo nesta caixa de comentários! ;)
Ainda estou a pensar se há alguma possibilidade de aceitar a proposta do Funes. Não por causa da mãe e do pai, quanto a isso tudo bem, mas por causa do Franz Liszt e do peixe amarelo... :-))
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