"São claras as crianças como candeias sem vento, seu coração quebra o mundo cegamente."*
Hoje, enquanto esperava pelo meu marido com as minhas filhas, um tóxico-dependente arrumador de carros contou-me a história da vida dele em poucos minutos. Efectivamente, poucos minutos bastaram para uma história com tantos capítulos que se repetem. Parte dela, estava escrita no corpo: o tom de pele avermelhado, os olhos semicerrados, as cicatrizes, a unhas, os lábios terrivelmente secos, ... Em poucos minutos, 90% das pessoas que passaram por nós cumprimentaram-no com um aperto de mão e a maior parte delas deu-lhe uma moeda, o que me aliviou alguma tensão, confesso. Era conhecido. Nasceu e viveu sempre naquela cidade, contou-me. "As pessoas ajudam-me...Têm pena de mim.... Conhecem-me de puto", dizia com um semblante que oscilava entre o envergonhado e o orgulhoso. Eu, sempre algo desconfiada, respondia: "Vejo que sim!". Sem tirar os olhos da minhas filhas, disse-me que tinha uma Rita de 5 anos, que vive com uma tia. Já não a via há 3 meses, apesar de viverem muito perto um do outro. "A última vez que a vi, levei-lhe 20€... (longo silêncio de olhar no chão). É que só tenho coragem pra lá ir quando tenho algum dinheiro para deixar pra ela...., mas não tenho conseguido...". Quando olhou para mim sorriu, tinha os lábios trémulos, e caíram-lhe lágrimas dos olhos.... Confesso que fiquei perturbada com aquilo. Apeteceu-me dizer-lhe qualquer coisa, mas não fui capaz. Percebi que ele também não conseguia dizer mais nada. Peguei na mão das minhas filhas, disse-lhe adeus e vim embora. Não lhe dei dinheiro. Não me passou pela cabeça dar-lhe dinheiro naquele momento. Ele também não mo pediu. Estava perturbada. Entramos no carro e ele veio dizer adeus às minhas filhas. Elas responderam euforicamente. Olhei-o de relançe. Ele mantinha os olhos rasos de água...
*Excerto de um poema de Herberto Helder
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